28.5.10

Despertares

João era um cadeirão.


Não apenas um cadeirão qualquer. Era um poço de ambição.


Confortável, elegante, sofisticado, ainda não estava ao nível de uma chaise-longue, mas sabia que lá chegaria eventualmente. Desprezava com veemência os seus homólogos das grandes superfícies. Ikea, onde toda a gente vai? Jamais! Para João, só roteiros alternativos e lojas de design.


Estava decidido a chegar ao topo. Deslocava-se nos círculos sociais mais adequados, privava com as personalidades mais selectas e sentava os rabos mais influentes. Para se ascender há que começar por baixo. João estava condenado ao sucesso e isso era ponto assente.


Um dia, porém, João viu a luz.


Ou melhor, a escuridão – segundos antes de um cónego de faces inchadas pelo álcool e portador de um traseiro com a largura de um camião atirar descontraidamente todo o seu peso para cima do pobre cadeirão.

João temeu pela vida. Sentiu-se pequeno perante aquela imensidão de pessoa. Imaginou em slow motion o violento embate a partir-lhe as pernas e a esborrachar-lhe as costas. Passou em revista todos os momentos importantes da sua ainda curta vida, uma retrospectiva antes do adeus, e reparou que não houve assim tantos como desejaria.


Nesse momento, percebeu tudo!

.

Percebeu que a vida é mais do que status e sorrisos ensaiados.
Percebeu que as suas prioridades estavam erradas.
Percebeu que o seu percurso era uma espiral rumo ao abismo. Ou pior, à Moviflor*.

E percebeu, ao olhar para o cónego, porque é que a gula é um pecado mortal.
Na verdade, aquele rabo constituiu uma verdadeira revelação, como se lá estivesse Jesus a olhar com ar reprovador.



Tarde de mais!





Ou talvez não…


Subitamente, o cónego pára. Um acólito de voz celestial chamara-o pelo nome, evitando o desastre por centímetros. João respirou de alívio. Recuperou da palidez momentânea. Olhou para cima e, ainda a tremer, agradeceu.

Fora contemplado com uma segunda oportunidade.


Depois disso, mudou diametralmente de vida.

Agora, pode facilmente ser visto a ajudar banquinhos de três pernas e os mais desfavorecidos em geral. Trocou o seu assento almofadado por um tampo de madeira. Faz trabalhos de carpintaria, canta no coro da igreja e acompanha o cónego nas suas pândegas no Cartaxo.
E, para rematar, mudou o seu nome para Josué da Fé.

João… perdão, Josué é um cadeirão novo.

Ámen.

.

* Largo da Graça, nº 28
1199-008 Lisboa

1 Comentários:

Anonymous Porcos no Espaço disse...

É fascinante a forma como situações extremas costumam dar a volta ao miolo.

6:54 da tarde  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial